Espaço de Opinião | A arquitetura, a IA e o fato de banho

Selecionar um projeto por imagem virtual equivale a escolher colaboradores de uma empresa por fotografias em fato de banho


Um edifício é um organismo complexo, concebido para resistir à agressividade do clima, às forças da natureza (no paraíso não há arquitetura, por desnecessária) para prestar serviços de ordem funcional e para emocionar, caso contrário seria desalmado, sem alma e sem "luz” que o afirmasse no universo da cidade, pelo que a sua imagem é determinante para resolução da equação que é o distúrbio de transformar a natureza numa obra humana, mas apreciada isoladamente, sem conteúdo, é apenas um invólucro, um embrulho vazio.

São os edifícios a fazer cidade e a compor a sua imagem, admitindo estarmos agora a projetar obras que terão um período de vida útil não inferior a 60 anos. Simultaneamente, intervimos em edifícios construídos na década 60 do Século XX, numa perspectiva de reabilitação, em vez de demolição e construção nova, em benefício da descarbonização e circularidade da construção, impostas pelo combate às alterações climáticas.

A necessidade de proceder à verificação da vulnerabilidade sísmica das estruturas de betão armado projetadas de acordo com o REBA e a eficiência energética das edificações, remodeladas ou novas, desloca a metodologia da conceção do projeto da prancheta do arquiteto e engenheiro para a bancada de laboratório.

Numa primeira análise os problemas são dissecados para orientar o projeto num caminho de decisões pertinentes e adequadas ao caso, quer em matéria de reforço estrutural, face à nova regulamentação (Eurocódigos), quer de sustentabilidade e eficiência energética, durante o período de vida útil, de modo aberto, para incorporar novas medidas desenvolvidas e implementadas, no período em que estará ativo.

Podemos dizer, uma vez mais, que necessitamos de um código da edificação que não seja prescritivo, mas sim de desempenho, que permita avaliar as decisões em termos do seu resultado prático, em vez de se dispor de uma folha de cálculo Excel com cruzinhas do tipo totobola, em linguagem binária (tem/não tem), perdendo a necessária visão de desempenho no conjunto das variáveis.

Tudo isto implica abordar um conjunto de medidas de apoio ao projeto, um código da decisão sobre quais os projetos a executar e quais devem ficar fora da seleção.

Estas medidas terão de se organizar em torno de duas questões seminais, uma vez decidida a operação e desencadeados os mecanismos para escolha da equipa técnica responsável pela elaboração do projeto:

1. Quem responde pelo rigor matemático da correspondência entre o volume de obras a executar e o montante da verba a cabimentar?

2. Quem responde pelo rigor da escolha do projeto para base da empreitada de obras e edificar?


No 1º ponto, a administração pública central e local deverá dispor de aplicação preparada para lhe dar resposta, o que exige a realização de trabalho por grupo técnico integrando medidor-orçamentista, arquiteto e engenheiro que certifique o resultado na conjuntura real do investimento, seus riscos e imponderáveis.

Relativamente ao 2º ponto, entendemos que o problema refere à fragilidade e incapacidade do sistema vigente de concurso público com júri descaracterizado e cujas decisões terão grandes implicações no futuro imediato, e de longo prazo.

No imediato, da conjugação de operações de custo subestimado com projetos de custo superior ao previsto, resultará que as operações fiquem bloqueadas em fase de projeto ou os concursos de empreitada fiquem desertos caso se esmaguem os preços para o custo da obra caber na verba definida.

No longo prazo, caso se encontrem soluções de natureza jurídico-administrativas para ultrapassar os bloqueios, as gerações futuras ficarão a pagar o custo de soluções que não foram ao âmago dos problemas da sustentabilidade energética e se ficaram pela imagem virtual, matéria em que a estética nem sempre é boa conselheira pois, como todos sabemos, o olhos divertem-se a enganar o cérebro e a nossa percepção das coisas.



Fernando Bagulho
Arquiteto, membro da Direção da APPC

novembro 2024