Espaço de Opinião | Simplex Urbanístico: Decreto-Lei 10/2024 de 8 de janeiro

As substanciais alterações ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, decorrentes da publicação do Decreto-Lei 10/2024 de 8 de Janeiro, deverão merecer uma atenta análise e reflexão de todos os intervenientes nos processos de urbanização e edificação, designadamente dos projectistas e consultores.

Remetendo a análise detalhada da nova versão do RJUE, com as alterações agora introduzidas, para outros fóruns, urge reflectir sobre as que mais podem impactar na actividade e responsabilidade dos projectistas e consultores, concretamente a sobre os procedimentos de comunicação prévia e autorização de utilização..

1. COMUNICAÇÃO PRÉVIA

Uma das alterações relevantes introduzidas no RJUE, respeita ao procedimento da comunicação prévia.

A acrescentar aos já existentes, criam-se novos casos em que o procedimento de controle prévio será obrigatoriamente a comunicação prévia, revogando-se a possibilidade de os requerentes optarem, em alternativa, pelo licenciamento.

Fá-lo com uma manifesta intenção de punição, dos requerentes, como claramente se explicita no preâmbulo do diploma: 

"Assim, verificou-se que o regime da comunicação prévia era pouco utilizado por receios dos interessados, em resultado de um conjunto de circunstâncias variadas que os incentivavam a utilizar o procedimento mais moroso e consumidor de recursos da licença, em grande medida contrariando o interesse público que se procurava satisfazer. 

Essas circunstâncias prejudicavam a possibilidade de aproveitar oportunidades de simplificação e redução de custos, pelo que o interesse público impõe a criação de condições para que sejam efectivamente aproveitadas o que, neste caso, envolve a obrigatoriedade de seguir esse procedimento e a impossibilidade de optar por outros mais gravosos, mais demorados e mais consumidores de recursos públicos.”

Em boa verdade, conclui que os requerentes que, podendo optar por um procedimento menos moroso e menos consumidor de recursos, a ele não recorriam contrariando o interesse público.  Curiosa conclusão!

É não entender, não querer entender, ou ignorar, que os requerentes e os projectistas recorriam preferencialmente ao licenciamento porque este procedimento configurava um risco mínimo, já que era objecto de validação e aprovação expressa pela Câmara Municipal, contrariamente à comunicação prévia que pressupõe um risco máximo, já que a câmara municipal não aprecia nem aprova o projecto, e,  até 10 anos após a emissão do título da comunicação prévia deve, em sede de fiscalização sucessiva, inviabilizar a execução das operações urbanísticas objecto de comunicação prévia e promover as medidas necessárias à reposição da legalidade urbanística, quando verifique que não foram cumpridas as normas e condicionantes legais e regulamentares, ou que estas não tenham sido precedidas de pronúncia, obrigatória nos termos da lei, das entidades externas competentes, ou que com ela não se conformem.

Desconhecia o legislador que um número significativo dos projectos submetidos a licenciamento carecem de reformulação, por incumprimentos legais, designadamente dos PDM e outras normas regulamentares? 

Recentemente, em Setembro de 2022, a Câmara de Lisboa quantificou em 91% os projectos de arquitectura submetidos à CML que careciam de reformulação, entendida como não cumprimento de normas regulamentares.

É expectável que, doravante, os projectos de arquitectura submetidos nos procedimentos de comunicação prévia, miraculosamente, passem a respeitar na íntegra todas as normas regulamentares? Claro que não!

Perdeu-se uma boa oportunidade, no sentido da redução do risco da comunicação prévia, de legislar no sentido de tornar obrigatória a fiscalização sucessiva da comunicação prévia num prazo curto, que permitiria que incumprimentos regulamentares detectados fossem corrigidos numa fase de preparação ou início da execução da obra.

Face à acrescida responsabilidade que irá ser pedida aos projectistas não entendeu o legislador aproveitar este momento para publicar a portaria que deveria regular as condições mínimas do seguro de responsabilidade civil, o âmbito temporal de cobertura, os termos de reclamação de sinistros, os termos das excepções ao âmbito da cobertura e os montantes a serem fixados, tendo em conta a qualificação detida, as funções desempenhadas, o valor dos projectos ou obras em que podem intervir e as obrigações a que estão sujeitos, que é aguardada desde 2009, nos termos do disposto no Artº 24º da Lei 31/2009 de  3 de Julho, que estabelece a qualificação profissional dos técnicos responsáveis por projectos e fiscalização e direção de obra?

2. AUTORIZAÇÃO DE UTILIZAÇÃO

Outra das alterações relevantes introduzidas no RJUE, respeita ao procedimento da autorização de utilização, com a eliminação do alvará de utilização.

Doravante, no caso dos procedimentos que tenham sido precedidos de controle prévio – licenciamento ou comunicação prévia – no final da obra, será suficiente a entrega na câmara municipal de: 

i) Termo de Responsabilidade subscrito pelo director de obra ou pelo director de fiscalização de obra, no qual aqueles devem declarar que a obra está concluída e que foi executada de acordo com o projecto;

ii) As telas finais, mas apenas quando tenham existido alterações do projecto, devendo as mesmas estar devidamente assinaladas, 

podendo o edifício ou suas fracções autónomas poder ser utilizado para a finalidade pretendida imediatamente após a submissão da documentação acima referida.

Sublinhe-se que a entrega da documentação não pode ser recusada nem indeferida, excepto se os dois documentos acima referidos não tiverem sido remetidos, devendo nesse caso, o remetente ser notificado para remeter os documentos em falta.

Presumindo-se que as telas finais deverão ser subscritas pelo projectista de arquitectura, e atendendo a que o documento não pode ser indeferido, será aquele o único a assumir integralmente a responsabilidade de que as alterações ao projecto introduzidas em obra, não estavam sujeitas a controle prévio, caso em que o pedido de autorização de utilização deveria ter sido precedido da submissão à câmara municipal de um projecto de alterações durante a execução da obra, situação que era frequentemente detectada quando, anteriormente a esta alteração legislativa, as câmaras municipais tinham a faculdade de apreciação e aprovação das telas finais. 

Se para o Director de Obra ou Director de Fiscalização não decorrem desta alteração legislativa responsabilidades para além das que já assumiam anteriormente, já no caso dos projectistas de arquitectura decorre implicitamente a responsabilidade de certificarem que as alterações identificadas nas telas finais não careciam de controle prévio.  

Perdeu-se, em meu entender, à semelhança do caso da comunicação prévia, uma boa oportunidade, no sentido de mitigar a inexistência de alvará de utilização, de legislar no sentido de tornar obrigatória a fiscalização sucessiva da autorização de utilização num prazo curto, que permitiria que incumprimentos regulamentares detectados fossem corrigidos numa fase precoce de utilização dos edifícios ou fracções.

João Freitas Fernandes
Engenheiro Civil – Licensing Manager

*Artigo escrito segundo o antigo acordo ortográfico.

março 2024